sexta-feira, 23 de julho de 2010

Direitos Humanos para bandidos?

















Meu querido amigo Danillo Fernando Sandri me perguntou hoje de manhã. Fabrício, por que a imprensa fala o tempo todo em 'suposto'(1) homicídio, o 'suposto' mandante, o 'suposto' executor? E eu lhe disse: Ela quer se preservar - especialmente contra o dano moral - , trasmitindo a notícia 'em tese', 'hipoteticamente', porque o juízo da culpa não está formado numa condenação definitiva pela Justiça. Até aí nada de mais. É, aliás, o que se recomenda. O problema é que, ao mesmo tempo em que a imprensa tem preocupação em não condenar alguém antecipadamente, ela se substitui à polícia e revela o tempo todo provas inéditas do caso, levando a sociedade a ter certeza de que o goleiro Bruno, por exemplo, esteve envolvido em tudo. Isso é paradoxal, contraditório. Sabemos que a liberdade de imprensa e a da manifestação do pensamento não são valores absolutos. Há, de outro lado, outros valores de mesma importância: presunção de inocência, devido processo legal, proteção à integridade física e moral das pessoas.  O que a mídia tem feito nesses casos é lamentável. Para conquistar mais audiência, ela investiga, acusa e condena, especialmente quando os 'supostos' envolvidos são pessoas famosas. Esses 'eventuais' envolvidos - se forem a julgamento - já vão condenados por toda a sociedade. Os delegados(as) de polícia que presidem a investigação se deslumbraram com os holofotes e disseram várias vezes "Eles são culpados. As provas são fortes, irrefutáveis". Isso não se faz. Isso não se espera de uma autoridade policial. O inquérito policial é fase administrativa, na qual há indiciados (não há denunciado, não há réu, não há condenado). E mais: no inquérito, não se permite o contraditório, ou seja, aquilo que é produzido como 'prova' não é submetido à manifestação da defesa. O delegado, ao final de qualquer inquérito, emite um relatório que não vincula ninguém.  É por isso que nos relatórios de inquérito policial há a expressão 'salvo melhor juízo' (smj).
Eu acho um absurdo alguém dizer que os direitos humanos só servem para proteger bandidos. Quem diz isso não sabe o que são os direitos humanos. A propriedade, a intimidade, a privacidade, a imagem, o meio ambiente, a livre iniciativa econômica, a cultura são direitos humanos. Quando se fala em direitos humanos, pensa-se apenas no processo penal, no crime, no bandido, no estuprador etc. Quais são os direitos humanos que eles têm? Os mesmos que todos nós temos: devido processo legal, ampla defesa, contraditório, integridade física e moral, direito de permanecer calado (não produzir prova contra si próprio), inviolabilidade do domicílio, prisão somente em flagrante ou por ordem judicial etc. Isso é demais?
O uso da algema é excepcional. No caso 'goleiro Bruno', os indiciados estão algemados o tempo todo, até dentro da carceragem. Vejo como exagero. Isso viola a súmula do Supremo Tribunal Federal (2).
Há desavisados que dizem: direitos humanos para humanos direitos! Admitir esse trocadilho infame - expressão do professor Thonny - é eliminar todas os direitos e garantias constitucionais conquistadas com tanto suor e sangue ao longo de tantos anos. Ou estamos com saudade dos períodos tristes de ditaduras e governos autoritários, e  achamos legítimo julgamento sumário,  censura, confissão  obtida por meio de tortura?

(1) suposto: adj (lat suppositu) 1 Admitido por hipótese; apresentado, avançado ou dado hipoteticamente; conjeturado. 2 Atribuído sem razão ou fundamento. 3 Que se faz passar falsamente por outro. 4 Inventado ou imaginado como verdadeiro ainda que falso; fictício. 5 Alegado como verdadeiro, sendo falso. 6 Que não é real. Antôn (acepções 3, 4 e 5): verdadeiro; (acepção 6): real. sm 1 A coisa suposta ou conjeturada. 2 Conjetura, hipótese, suposição. 3 Metafísica A individualidade da substância completa e incomunicável, principalmente de pessoa humana; a substância; o que existe abaixo do acidente; o que pode subsistir por si. Suposto que: na suposição ou hipótese de; admitido que; dado o caso que; partindo do princípio que.

(2) Súmula Vinculante n.º 11 (STF):  "Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado"







terça-feira, 6 de julho de 2010

Vó Ana

Quero pedir licença ao meus leitores para fazer uma homenagem à minha querida vó Ana Francisca da Silva, que há uma semana partiu dessa vida. Tive o privilégio de viver mais vinte anos da minha vida próximo dela. Ela era natural do Rio Grande do Norte, mas viveu grande parte de sua vida em São Paulo e aqui em Rondônia. Apesar disso, conservou bastante seu sotaque e expressões do nordeste, o que me agradava muito. Tinha uma habilidade incrível. Fazia um artesanato chamado 'labirinto' usando uma armação em madeira, na qual ela ia transformando fios e sacos em belos panos de cozinha. O mais impressionante era quando ela passava pequenas linhas em minúsculas agulhas.  A tapioca com cafezinho era algo imperdível.
Sempre teve um jeito muito especial e agradável quando falava comigo pessoalmente ou pelo telefone.  Tinha uma voz forte. Era muito bom quando ela dizia quase que cantando: Fabrício.... Isso me emociona! Fiquei a semana passada toda vendo flashes de momentos que vivi com ela. Chorei, chorei e me emociono de novo agora. Quando ela morava aqui em Cacoal, incumbiu-me de levá-la todo domingo à igreja. Eu fazia isso com muito prazer e ela,  sempre, sempre, me agradecia com aquele jeito doce de vó.  Protestante, de uma igreja muito rigorosa, brincava sempre dizendo que era a 'Ana Chico'. Ela gostava de ser chamada assim. Dizia que nós éramos da famíla Chico por conta do nome dela. Viveu 88 anos de absoluta lucidez. Criou treze filhos, incluindo um de afeto, de coração.
Vó é um ser que encanta, que desarma qualquer pessoa. 
Os cabelos branquinhos, os vestidos estampados e o caminhar lento - apoiado na bengala - causavam em mim um sentimento de respeito, amor, encantamento. Lembrei-me especialmente de dois momentos que quero compartilhar aqui com vocês. Quando crianças, eu, meu irmão e um primo fomos passar as férias no sítio, na casa dela e de meu avô, aqui em Cacoal. Ficamos lá uma semana, correndo pelos cafezais e brincando pelo quintal com os franguinhos Noronha, Nazinha e Nogueira - nomes dados por ela.  Na última noite das férias no sítio, o meu primo fez xixi na cama e deixou lençóis e cobertores todos molhados. Ela, na nossa despedida, não disse nada, ficou 'na dela'. Foi cortês, discreta. Dias depois, lembrando-se do ocorrido, ela dizia: No derradeiro dia, o menino fez aquilo na cama, no derradeiro dia, no derradeiro dia....
Eu ouvi tudo e a palavra 'derradeiro' me chamou muito a atenção, porque eu não sabia o que era.  É claro que o contexto já permitia deduzir o significado. Hoje, toda vez que escuto ou falo 'derradeiro', a vó Ana me vem à mente. É por isso que gosto de usá-la sempre. O outro momento foi quando eu e minha mãe fomos levá-la para fazer uma mamografia. Ela ficou muito incomodada com o tal exame. Estava visivelmente desconcertada. Ela entrou no consultório do médico e,  quando saiu, eu logo perguntei: E aí, vó, como foi o exame? E ela, usando o seu jeitão nordestino, me disse: meu filho, colocaram minhas 'malaca' numa 'estrovenga'. Eu e minha mãe achamos graça, imaginando o que ela queria dizer. Cheguei em casa e fui logo ver o dicionário. Lá estava assim: 'malaca': peito caído; 'estrovenga': máquina esquisita. Que sabedoria a da vó Ana! Sou tomado agora por muita saudade e as lágrimas persistem em preencher meus olhos. Tenho certeza de que agora a vó Ana está acolhida por Deus. Aqui ela arrebentou! Um Beijo, vó!