Não resisti e resolvi escrever um pouquinho sobre o fato ocorrido em Novo Hamburgo-RS, onde um grupo de amigos, como se pratica em todo Brasil, fez um bolão para participar da Mega-Sena. As pessoas participantes do bolão acertaram os números que foram sorteados. Estavam certas de que iriam ganhar uma bolada. Ocorre, entretanto, que a funcionária da lotérica 'esqueceu' (A Polícia está sustentando a prática de crime de estelionato) de registrar a aposta. Isso, por óbvio, gerou muita confusão e notícia na TV e na internet o tempo todo. Conversei com alguns amigos e com o meu pai há pouco sobre a quem atribuir a responsabilidade. Penso assim. A Caixa Econômica Federal é uma Empresa Pública Federal, entidade da Administração Pública Indireta da União. Ela tem personalidade jurídica própria, é pessoa jurídica distinta da União. Responde, assim, pelos seus atos. A CEF permite que particulares, as lotéricas, prestem o seu serviço, o que se dá por meio de um delegação formal. Por outro lado, uma lotérica deve sempre ser constituída como pessoa jurídica, também evidentemente responsável pelos seus atos. Deve-se observar, como dito, que as lotéricas prestam o serviço como se a própria CEF o prestasse. Há uma expressão latina que evidencia bem isso: longa manus, que significa mão longa, ou seja, a lotérica age como se fosse uma extensão da empresa pública. É inegável que, nesse caso, a responsabilidade maior é da lotérica, mas é impossível não se cogitar, ainda que subsidiariamente, na responsabilidade da Caixa, a quem deve caber realizar frequentemente fiscalização e, quando cabível, aplicar sanções às lotéricas que não se comportam a contento. Incabível é alegar que 'bolão' é algo que oficialmente não existe. Nunca ouvi notícia de punição aplicada pela Caixa a lotéricas em razão desse comportamento. O que existiu, na verdade, foi a efetiva entrega na lotérica dos jogos feitos por aquelas pessoas. Penso que os gaúchos prejudicados devem 'sapecar' como réus na ação judicial tanto a lotérica quanto a Caixa Econômica Federal. Há outro detalhe: o dano é material (52 milhões de reais), ainda que se possa pedir também o dano moral (o abalo emocional experimentado pelos jogadores). E mais: a relação é de consumo e a responsabilidade é objetiva. Por consequência, não se discute, não se apura culpa, em qualquer de suas modalidades (dolo, negligência, imperícia ou imprudência). Exige-se apenas a prova da conduta (omissão), do dano e da relação de causa, o que está mais do que comprovado. Só lamento aos autores da ação, porque a gente conhece a 'celeridade' do nosso Poder Judiciário. Desejo a eles uma boa aventura épica! É isso.
8 comentários:
Fabrício... isso chegou a ser objeto de discussão na última aula de processo civil. Um aluno levantou essa hipótese nesses exatos termos em que você propõe: uma ação em que a Caixa fosse obrigada a indenizar os jogadores. Naquele momento, como agora, te confesso que não consigo enxergar a responsabilidade da Caixa, ainda que, processualmente falando, acredite que a ação possa ser intentada.
Em qual proporção se aferiria a participação da CEF nesse caso? O dano seria material? Uma ação que teria como objeto (e não quanto ao valor, mas quanto o mérito discutido) um prêmio de loteria? A incerteza do jogo concretizada em um sorteio pra depois, com uma outra pessoa jurídica respondendo pela negligência de outra - ainda que baste apenas a alegação de causalidade - tanto mais porque agora surgiu a diretriz da proibição do bolão? (ou se falaria que a sua existência, por tolerada na prática, é mais do que sabida e, portanto, permitida?)
Houve um erro humano de uma funcionária da Lotérica e não da Caixa Econômica. Mas ao mesmo tempo, confesso que enxergo a possbilidade da discussão meritória nos exatos termos em que você propõe no texto e, se me ocorresse alguém com a intenção de o fazê-lo, eu faria...
Mas vejo que a jurisdição poderia, tranquilamente, caminhar para ambos os lados.
Mas deve ter sido uma experiência terrível para esses gaúchos
Um boleto de loteria, a meu ver, é uma expectativa de direito. Apenas a premiação é que efetiva o direito. Quem pagou os boletos não tinha direito algum até que o sorteio, por um infeliz acaso, os faria titulares do direito ao prêmio. Mas como a jovem funcionária da lotérica não registrou o jogo, não há que se falar em direito. O jogo não foi feito, logo não há sequer expectativa, muito menos direito.
A Lotérica e a Caixa Econômica são solidárias no polo passivo desta ação. Se a turma do bolão ajuizar uma ação apenas contra a Lotérica, esta chama ao processo a Caixa Econômica, e vão ficar no pingue-pongue até o Supremo, isso pelos próximos dez anos, no mínimo. O dono da casa Lotérica não tem como pagar o prêmio, e a Caixa já deu continuidade aos jogos, e não fala em pagar a um jogo que, pra ela, nunca existiu.
Particularmente, eu acho que a galera do bolão dançou bonito dessa vez.
Caro professor Fabrício, o seu texto é muito bacana e analisa o caso do bolão do Rio Grande do Sul de forma bastante clara. O teor jurídico do texto nos apresenta o norte a ser tomado pelos advogados do grupo de apostadores. Entendo que há responsabilidade da casa lotérica e também da Caixa Econômica. Agora só nos reta aguardar o desfecho desta epopéia lamentável. Parabéns pelo texto e pela crítica sempre sóbria e madura.
William, Laurindo e Thonny, obrigado por deixarem seus comentários aqui. Repeito aqueles que pensam diferente de mim, mas ainda sustento a responsabilidade da Caixa, o que, em princípio, não vejo como ser afastada. Um abraço.
Caro Fabrício,
muito pertinentes suas ponderações. Discuti o caso com alguns alunos e essa foi uma das hipóteses que levantei a respeito do caso. No entanto, não vejo a possibilidade do prêmio ser pago, ou seja, afasto o dano material pelo fato de o jogo não ter sido efetivamente realizado. Mas sustento a possibilidade da condenação da CEF na reparação dos danos morais causados, justamente por ser a lotérica uma extensão da própria caixa.
Abraço.
Este caso me aduz o quanto o direito é parecido com a literatura e o futebol: cabe várias interpretações, é lacônico e uma caixinha de surpresas. É por isso que me sinto em casa. Xô cartesianismo. rsrs Abraços.
Bernardo, eu penso que a pretensão da reparação pelo dano material é perfeitamente cabível, porque, uma entregues os jogos na lotérica, presume-se que eles serão registrados. Só se foi diferente e eu não estou sabendo. Quem fez o jogo já não saiu os bilhetes registrados? Valeu, garotinho. Abraço.
Rômulo, é verdade. Há várias interpretações, mas há também sempre uma mais sensata e razoável. Obrigado pela presença.
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