terça-feira, 10 de novembro de 2009

A Teoria das Maçãs


Eu sou apaixonado por esse texto do juiz federal George Marmelstein Lima (http://www.direitosfundamentais.net/). Nem preciso mais falar quem é ele, porque faço isso o tempo todo. Sou fã declarado. Nesse texto ele faz uma analogia maravilhosa entre a colheita de maçãs e o Pós-Positivismo, movimento que rompeu com o Positivismo e promoveu uma aproximação entre o Direito e a Ética por meio da Filosofia Jurídica, reconhecendo-se a força normativa da Constituição, dos seus princípios, bem como a exigência de conteúdo ético aos textos normativos. A Lei Fundamental tomou definitivamente o centro e o topo do sistema normativo, posição que era antes ocupada pelo Código Civil. Todo o direito infranconstitucional passa, nesse contexto, por um releitura, por uma filtragem constitucional. Enfim, o Direito, inclusive o privado, está constitucionalizado. Ontem, ao ver a prova do ENADE, percebi que o perfil das provas mudou. Há uma evidente libertação das provas que sempre pediam o texto seco de lei ou da Constituição. Parece que chegamos a um momento em que as provas serão mais críticas, mais pós-positivistas. Graças a Deus. Gosto tanto desse artigo que sempre o ultilizo nos cursos de Pós-Graduação que ministro. Vamos então a ele.



Para Kelsen, o papel do cientista do direito (jurista) é colher as maçãs que estão na árvore e estão prontas para consumo, colocando-as em um caixote. O critério dessa seleção deve ser totalmente técnico-científico: o colhedor analisa aquelas maçãs que podem ser consumidas e ponto final. Não cabe a ele discutir o sabor da fruta. As frutas mais ácidas e as mais amargas, desde que estejam prontas para consumo, podem ser colocadas no caixote.
Não cabe ao jurista se preocupar com a plantação da árvore, nem como a fase de adubação, de poda, enfim. O papel do jurista, como se disse, limita-se a colocar as frutas na caixa. Todo o resto do processo não interessa à ciência do direito.
Nesse processo, o juiz tem um papel diferente. O juiz deverá escolher, entre aquelas maçãs que foram previamente colocadas no caixote pelos juristas, aquela que será de fato consumida. A escolha do juiz é, de certo modo, arbitrária, no sentido de não ser possível verificar os critérios racionais utilizados pelo juiz para fazer aquela escolha. É um ato de vontade, que não interessa ao jurista.
Um ponto básico para compreensão dessa teoria (pura) das maçãs é que o sabor da fruta não deve ser levado em conta nem pelo jurista nem pelo juiz. Se a maçã estiver pronta pra consumo, deve ser consumida sem questionamentos.
A Teoria das Maças sob a ótica do pós-positivismo
Com o pós-positivismo, o consumidor das maçãs se tornou mais exigente, pois, em algumas situações, foram oferecidas maçãs muito amargas, que deixaram muitas pessoas com fome ou passando mal, já que não conseguiram comer uma fruta tão ruim. Por isso, resolveu-se submeter as maçãs a um controle de qualidade mais rígido. Somente as maçãs que passassem por esse teste de qualidade poderiam ser colocadas no caixote. Esse teste de qualidade incluiu um padrão de sabor: somente aquelas frutas mais saborosas deveriam ser selecionadas. Na teoria jurídica, esse padrão de qualidade é ditado pelos direitos fundamentais.
O papel do jurista também se transforma substancialmente. Percebeu-se que aquele que vai colher as frutas na árvore e colocá-las no caixote também é, no final das contas, consumidor. Logo, é natural que ele seja tendencioso nessa escolha para colocar no caixote apenas aquelas maçãs que, segundo o seu gosto pessoal, sejam saborosas. E aqui a Comissão de Qualidade Total, aquela mesma que impôs um critério de qualidade para que as frutas amargas e ácidas não sejam consumidas, exige um relatório substancioso daquele que colhe as maçãs para que ele diga quais foram os critérios que utilizou para selecionar as frutas.
As frutas estão mesmo adequadas para serem consumidas? As frutas já estão amadurecidas o suficiente? As frutas possuem os nutrientes necessários e indispensáveis para satisfazer o consumidor? Esse novo agrotóxico utilizado não poderá causar danos à saúde das pessoas? E assim por diante... No direito, esses critérios são conhecidos como "princípio da proporcionalidade".
O mesmo relatório é exigido do juiz, ou seja, daquele vai retirar as frutas da caixa para oferecer ao consumidor. Além de ter que justificar objetivamente a sua escolha, o juiz terá que ouvir a opinião dos consumidores antes de tomar uma decisão. Vai ouvir também nutricionistas, agrônomos, médicos, que lhe darão um suporte técnico para que a decisão seja a mais correta possível. Muitos defendem que o juiz pode escolher, inclusive, outras maçãs além daquelas que foram colocadas no caixote, mas nem todos pensam assim.
Durante todo esse processo, que vai desde a plantação da árvore até o consumo das maçãs, o consumidor é uma peça-chave. É ele quem vai escolher o adubo, o tipo do maçã, o tamanho das maçãs, enfim, cabe a ele as escolhas mais importantes. E como o jurista e o juiz ao mesmo tempo são consumidores (!) também eles participam desse processo...
A grande dificuldade nessa nova técnica de produção é definir os critérios objetivos para tornar o controle de qualidade mais claro e menos subjetivo. Os gostos pessoais não são uniformes. Por isso, há muita controvérsia sobre quem deve dizer o que passa e o que não passa pelo controle de qualidade. Em regra, a opinião da maioria dos consumidores deve prevalecer. No entanto, essa vontade não pode ser exercida ao ponto de prejudicar aqueles consumidores minoritários que possuem gostos diferentes. Ainda não se sabe quem deve proteger esses consumidores que estão em minoria. Por enquanto, essa questão ainda não foi totalmente definida pelo pós-positivismo, embora exista uma tendência de se permitir aos juízes (re)fazerem essa escolha, desde que justifiquem racionalmente a sua decisão. Ou seja, o controle de qualidade não é um momento único dentro do processo. Todos devem exercer esse controle, desde aquele que planta a árvore, passando por aquele que colhe as frutas, passando por aquele que escolhe a maçã para o consumo, chegando finalmente ao consumidor, que deve reclamar quando a maçã não estiver tão saborosa quanto ele merece.

Eis, em síntese, a teoria das maçãs...

8 comentários:

Bernardo Schmidt Penna disse...

Fala meu amigo Fabrício. Mesmo acessando seu blog quase todos os dias, ainda não havia feito nenhum comentário. Mas não é sem tempo. Excelente a teoria das maçãs. Deveria, inclusive, ser mais divulgada. Quando li aqui no blog, imediatamente indiquei a uma orientanda minha para que a citasse no Trabalho de Conlusão de Curso. Parabéns pelo blog e espero ser um "comentarista" contumaz. Abraço.

Fabrício Andrade disse...

Fala, queridão. Que bom que gostou e indicou à sua orientanda. Este espaço é pra isso mesmo, difundir o conhecimento, não apenas com os meus textos, mas aquelas coias boas que a gente sempre encontra no mundo virtual. Aliás, quando quiser que eu publique algo de sua lavra, é só falar comigo. Tenho certeza de que você tem muitíssimo para enriquecer meu modesto sítio eletrônico. Grande abraço e obrigado (111 neles!)

Gabriel Tristão 2°A Direito disse...

Reiterando o que o professor Bernardo Schmidt frisou...
Excelente a teoria das maçãs, muito bom, tratando do "principio da proporcionalidade" embora sendo iniciante no curso de Direito, espero ter o privilégio de ser seu aluno!
Parabéns pelo blog,estarei sempre fazendo uma visita para apreciar os textos posto,creio que será sempre novidades,e um ápice para a construção do meu conhecimento.
Abraços... Gabriel Tristão 2°A Direito.

Fabrício Andrade disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Fabrício Andrade disse...

Fala, Gabriel. Obrigado pela referência e pela visita. Espero mesmo contar com você sempre por aqui. É isso mesmo. A teoria das maçãs reproduz muito bem, por meio de uma metáfora, algo muito sério, que é a força normativa da Constituição. Ela não é e nunca pode ser uma promessa ideológica ou política inconsequente do legislador. Um grande abraço.

Gabriel Meurer. 4ºC disse...

Oláp professor. Adorei o texto, muito claro e objetivo. Creio que até mesmo quem tem pouco contato com o Direito vai entende-lo.
Concerteza vou olhar com outros olhos as maçãs.
Abraços.

Fabrício Andrade disse...

Gabriel, fico feliz por ter gostado. É bom tê-lo aqui. Saiba que já sugeri o texto a um profissional do direito extremamente bem sucedido e ele me disse que não compreendeu bem e que não entendia a minha euforia com o texto. Portanto, sinta-se privilegiado por ter extraído dele lições importantes para a sua vida. O conteúdo ético das normas deve ser sempre exigido, do contrário é sempre possível suscitar a sua inconstitucionalidade. Parabéns e grande abraço.

Thonny Hawany disse...

As maçãs são as leis. A macieira tanto pode ser o Estado, como entendem os positivistas, quanto pode ser a Sociedade, como entendemos nós, os pós-positivitas (Estou me achando). Depois de ler o texto "A Teoria das Maçãs", cheguei ao seguinte entendimento a priori: não se pode dar as melhores maçãs aos senhores e as piores e amargas aos porcos, visto que se deve antes determinar quem são senhores e quem são os porcos. É possível que os porcos sejam também senhores e que os senhores sejam porcos enlameados travestidos de lumpemproletariats e classificados como minorias no rodapé da pirâmide de estratificação social -(vide a Revolução dos Bichos). Colher maças sem questionar o seu valor intrínseco ou extrínseco seria o mesmo que aplicar o direito usando a letra fria da lei sem que houvesse um mergulho vertical na ação teleológica com o firme propósito de buscar os fins últimos da lei, da sociedade, da humanidade e da própria natureza das relações indivíduo/meio. O legislador, o jurista, o cientista do direito como consumidores de maçãs-legais, de fato, deveriam apenas colher os frutos e colocá-los nas caixas (arcabouço jurídico), mas como também são consumidores e porque sabem que podem colocar lá, na caixa, maças suculentas e outras tantas amargas, acautelam-se e colocam outros frutos neutros chamados ora de "exceto", ora de "salvo". E só eles sabem onde estão esses frutos. Quando lhes cabe uma maça amarga, apagam-se a estes pseudofrutos e dizem, por exemplo: "as maças amargas vão para os comuns apenas, por que tenho foro privilegiado" e, nesta perspectiva, o foro privilegiado são os "excetos" e "salvos" como frutos da salvação dos que estão nas partes superiores da pirâmide. Os "excetos" e os "salvos" não são frutos que podem ser deglutidos por qualquer um: é preciso, no mínimo ser porco-senhor ou senhor-porco. Uma reflexão final é sobre quem deve proteger àquelas minorias a quem só cabe a parcela de maçãs amargas? Entendo que o direito solidário impresso nas idéias pós-positivistas de grande parte dos operadores do direito tem feito esse papel muito bem. Na falta do legislador, os juízes têm decidido, na medida do possível, dando aos consumidores menos favorecidos maças que nem sempre são as melhores, mas que matam a forme e a sede de justiça daqueles indivíduos sociais que dependem de um patrono social. E esse papel de padrinho das minorias que culturalmente no Brasil sempre foi do Executivo e mesmo do Legislativo, tem sido, por ironia cultural também, do Judiciário. Veja as decisões em favor da comunidade LGBT, em favor de idosos, de crianças, índios, negros etc. Em suma: creio que a justiça foi desde sempre o verdadeiro patrono dos oprimidos, os outros apenas usavam máscaras, eram, pois, lobos em pele de cordeiro. A pele se gastou e a face apareceu. Hummmmmm!!!!! Desculpe-me pelo comentário extenso, mas me empolguei.