A exemplo do que faz o meu amigo William Gama, adotarei aqui no blog o espaço denominado "Nepotismo", no qual publicarei textos de parentes. Hoje, um do meu irmão. Trata-se de um crônica muito interessante sobre a Justiça brasileira. Boa leitura!
Por Flávio da Silva Andrade*
Não faz muito tempo, recebi uma carta de meu velho tio que mora no Estado de São Paulo. Dentre as felicitações e manifestações de saudades que nos dirigiu, disse que sempre admirou Rui Barbosa, ao seu ver um dos maiores expoentes do Direito Brasileiro, mas que atualmente não acreditava mais no Poder Judiciário em razão de sua crítica lentidão e de sua incapacidade de combater efetivamente a corrupção e fazer diminuir a impunidade no país. Em resposta, sem querer lhe tirar totalmente a razão, expus meu ponto de vista sobre o assunto: “Prezado tio, foi com felicidade e satisfação que recebi sua carta. Pude aprender um pouco mais graças a seus conhecimentos e cultura hauridos ao longo dos anos. Fico alegre em saber de seu interesse pelo mundo jurídico, especialmente pelo jurista, jornalista, político e orador Rui Barbosa. Realmente, ele foi cognominado “Águia de Haia”, por sua brilhante atuação como representante do Brasil na 2ª Conferência de Paz, realizada em Haia, na Holanda, em 1907. Ali ele se revelou um grande defensor das idéias liberais, tendo realizado discursos históricos, até hoje lembrados, principalmente no meio jurídico.
Para ilustrar a cultura do saudoso baiano Rui Barbosa, conta-se que, certa feita, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:
Para ilustrar a cultura do saudoso baiano Rui Barbosa, conta-se que, certa feita, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:
-Oh! bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão confuso, coça a cabeça e diz:
- Doutor, eu levo ou deixo os patos?
Quanto à morosidade da justiça brasileira, você está coberto de razão. É fato que vem surgindo um alento com a criação dos Juizados Especiais Federais e também com os Juizados Virtuais, mas o problema é que a Constituição Federal de 1988 abriu as portas do Poder Judiciário, facilitando o acesso à Justiça, mas até aqui não se conseguiu encontrar, satisfatoriamente, a porta de saída! Apesar de se ter incluído no Texto Constitucional o princípio da razoável duração do processo, a maioria dos processos ainda tramita por muitos anos até a solução definitiva. Se não obtida uma liminar, a parte cujo direito foi violado pode acabar prejudicada em função do prolongado trâmite do processo.
Nossa legislação processual (civil e penal) revela-se arcaica. Nosso Código Penal, como você bem lembrou, é da década de 40. Também o Código de Processo Penal é de 1942. Nosso Código Civil era de 1916 e só recentemente foi substituído. Já o Código de Processo Civil é de 73, sendo que está ultrapassado para cuidar dos modernos conflitos de interesse que chegam, em números alarmantes, às Cortes de Justiça.
Além desse aspecto de caráter legislativo, há a possibilidade de uma série interminável de recursos. Muitas causas vão até o Supremo Tribunal Federal, apesar de que o Pretório Excelso só deveria cuidar de casos de repercussão geral e de sua competência originária (somente questões relevantes relativas à Constituição Federal). Só agora, recentemente, é que foram aprovadas as leis que regulamentaram as chamadas súmulas vinculantes e também o regramento para os recursos repetidos, o que deverá encurtar o tempo de tramitação dos processos.
Vale realçar também que, mesmo de modo vagaroso (culpa do Poder Legislativo Federal), estão sendo reformados os citados códigos, medida que deverá tornar mais célere o andamento dos processos, especialmente porque finalmente foi editada a Lei nº 11.419/2006, que cuida do chamado processo eletrônico. Isso já é realidade na Justiça Federal e em vários Tribunais Estaduais. Na Vara Federal em que trabalhei até o ano passado, por exemplo, mais de 96 % dos processos são digitais (justiça sem papel). Acontece que essa nova sistemática só se tornará mais concreta e ampla no país caso haja um maciço investimento estatal em tecnologia da informação juntos aos tribunais. Também há a necessidade de se reforçar o repasse orçamentário do Poder Judiciário, permitindo-se a contratação de mais servidores, a instalação de novas varas e a realização de treinamentos e cursos de aperfeiçoamento. Nesse ponto, há de se contar com a sensibilidade e o bom senso do Poder Executivo e também do Parlamento.
No campo penal, a situação se mostra mais crítica. O crime organizado já está na era cibernética e atuando em várias frentes, avançando cada vez mais, ultrapassando todos os limites. O Congresso Nacional, por sua vez, só sinaliza para um aperfeiçoamento das leis ou recrudescimento normativo graças às pressões da imprensa e da população indefesa, à medida que se tem notícia de um grave crime, como aquele de que foi vítima o pobre menino carioca João Hélio. Aguardemos, pois, o próximo pacote legislativo, sabendo que há o risco de inocuidade, já que a questão se revela mais séria e tem contornos sociais, passando, ademais, pela necessidade premente de melhor aparelhamento das polícias e fiscalização efetiva das fronteiras pátrias.
No atual contexto, a verdade é que, no aspecto criminal e no que diz respeito ao combate à improbidade administrativa (corrupção na administração pública) e às infrações eleitorais, não tem havido efetividade nas investigações e celeridade nos julgamentos, criando-se ambiente propício para a impunidade. Note-se que não se pode confundir polícia com justiça. O Poder Judiciário só pode julgar aquilo que chega às suas mãos, mas acontece que, como dito, as polícias civis e militares, em muitos Estados, estão desestruturadas e às vezes, lamentavelmente, sofrem ingerência política. A Polícia Federal, com o apoio recebido do Governo Federal, vem fazendo um bom trabalho, avançando em investigações e cumprindo uma série de mandados de prisão e de busca e apreensão, expedidos pela Justiça Federal em todo o país. Isso já é um alento. A única crítica é no sentido de ser desnecessário o espetáculo midiático quando das prisões e do cumprimento dos mandados de busca. Não se pode esquecer que o preso perde a liberdade, mas mantém o direito à imagem, à intimidade e à vida privada. Como conseqüência disso, o Supremo Tribunal Federal editou Súmula Vinculante nº 11, segundo a qual “só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros”.
Por outro lado, penso que devemos lutar para mudar o quadro de corrupção e impunidade que torna o Brasil conhecido no mundo. O inteligente Jô Soares, tratando do assunto, lembrou que “a corrupção não é uma invenção brasileira, mas a impunidade é uma coisa nossa”.
De fato, essa é uma realidade que precisa ser transformada. As instituições competentes devem, a bem da sociedade, tentar converter em condenações as denúncias fundadas em provas, respeitadas as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Ajudaria muito se os Tribunais Superiores, integrados por ministros nomeados, passassem, sem perder o equilíbrio e a prudência, a ter uma visão mais enérgica quando da aplicação da lei, como o é nas instâncias de 1º grau e nos Estados Unidos da América, por exemplo. No Brasil, os ministros ficam distantes dos acontecimentos, tornando-se às vezes dissociados da realidade de uma sociedade que se vê acuada e que clama por Justiça. No ano passado, a então Presidente do Supremo e o Ministro Gilmar Mendes foram assaltados no Rio! Sentiram na pele o que a população está sofrendo...
O povo não mais se conforma calado com atos criminosos e de corrupção. Não se pode mais admitir uma sociedade marcada pela violência aguda, por políticos e funcionários corruptos, pelas desigualdades sociais e pela pobreza. Para que as gerações futuras possam viver em um país digno e honrado, impõe-se que, sem prejuízo do investimento em educação e saúde, seja a lei aplicada com mais rigor, de maneira a desencorajar o avanço da criminalidade, especialmente no que tange aos delitos contra a administração pública, permitindo-se, quem sabe, em futuro próximo, governos mais honestos e justos, de modo que possamos ter uma sociedade mais igualitária e, quiçá, mais feliz.
Por fim, voltando ao jurista da sua predileção, Rui Barbosa, um dos maiores combatentes da corrupção, vale lembrar trecho de importante discurso em que disse: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, e rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.
Ainda que tenha razão o renomado jurisconsulto e orador, não podemos esmorecer, de modo que, com sacrifícios e esperanças, devemos continuar travando batalhas e fazendo esforços em nome do ideal de Justiça, aplicando a lei como manda a Constituição da República e da maneira que espera a sociedade.
Espero que tenha assistido à minissérie MAD MARIA e também, por último, ao seriado AMAZÔNIA, os quais bem retrataram a história dos Estados de Rondônia e Acre, respectivamente. Por tais obras se pode ter uma noção de como foi a saga do povo que aqui se instalou no final do século XIX e início do século XX. É verdade que a história acreana, com a revolução, é bem mais atraente que a da terra do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, o que, entretanto, não diminui a grandeza do Estado da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.
Fraternal abraço, acompanhado de votos de consideração e apreço”.
* O autor é Juiz Federal em Rondônia
Um comentário:
Ah, se pudéssemos aprender sempre com cartas de velhos tios. Essa reflexão me fez lembrar do caso mais recente na mídia envolvendo um Senador de Rondônia. A decisão do STF não era para ser avaliada por Comissão de Constituição e Justiça nenhuma (INDIGANÇÃO), o STF é a maior instância da justiça brasileira. Até parece que a decisão dada pelo STF caberia recurso para a CCJ (Só na cabeça confusa do Sarney! Sarney? Ainda está por lá!?. Que vergonha!!!! Como diria um conhecido e ilibado jornalista brasileiro. Deixando de lado, mais um capítulo das vergonhas nacionais, vamos relembrar Rui Barbosa lendo novamente o texto do Dr. Flávio Andrade, vamos aprender com as lições de moralidade do velho tio e com as respostas de um sábio juis federal. Parabéns professor Fabrício pela decisão de publicar o este texto. Vamos continuar falando e quem sabe um dia tudo não pode ser diferente no tocante ao exercício daqueles que representam os 3 poderes deste Estado Democrático de Direito chamado Brasil.
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