quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O JOGADOR ARGENTINO PRATICOU CRIME DE RACISMO?

Lembrei-me outro dia do espisódio que envolveu o jogador brasileiro Grafite, quando, numa partida pela Libertadores, um argentino o chamou de "macaco". Foi uma confusão danada. Prisão em flagrante e tudo. Recentemente, o jogador argentino que joga no Grêmio, Máxi Lopez, também xingou uma pessoa de "macaco". Parece que os nossos "hermanos" gostam muito desse modo 'carinhoso' de chamar os brasileiros. Aliás, agressões dessa natureza não são raras no futebol, especialmente na Europa, em que muitos brasileiros já foram delas vítimas. Referindo-me ao Caso Grafite, escrevi à época um artiguinho em que tento dar o real enquadramento à conduta praticada, aduzindo outras perspectivas jurídicas. Aí vai!
No jogo do dia 13/04/2005, pela Libertadores da América, entre São Paulo e Quilmes, da Argentina, o jogador argentino Desábato proferiu um xingamento de natureza preconceituosa ou de cunho racista, como vem afirmando a imprensa, contra o atacante brasileiro Grafite. Ocorre, entretanto, que, considerando a existência de uma agressão verbal dessa natureza, não se pode afirmar que houve o crime de racismo, pelo menos conforme a descrição desse delito pela lei brasileira. De acordo com a Lei 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceitos de raça e de cor, a conduta está sempre descrita com os núcleos do tipo penal no sentido de negar, obstar, recusar, impedir, a realização daquilo que a lei permite a todos, independentemente da raça, cor, etnia ou procedência nacional. Nota-se, portanto, que a conduta do argentino, sob o aspecto técnico-jurídico, não se amolda à definição típica do crime que a doutrina convencionou chamar de racismo.
O ato enquadra-se, na verdade, no delito previsto no art. 140, § 3º, do Código Penal, que ficou conhecido como injúria qualificada, em razão da gravidade da ofensa, pelo fato da alusão a raça, cor, etnia, religião ou origem. Pelo que se noticia, o indiciamento do argentino ocorreu como incurso nesse crime. Destaca-se que o cometimento da injúria atinge a honra subjetiva da vítima, ou seja, aquilo que ela pensa sobre si mesma.
É importante ressaltar que esse crime, como a maioria dos delitos contra a honra, enseja responsabilização por meio de ação penal privada, ou seja, o próprio ofendido deve propor a ação, chamada de queixa-crime, no prazo de seis meses, contados da data da ciência de quem é o autor da ofensa, sob pena de decadência do direito de ação (art. 103, CP). Portanto, o atleta terá esse prazo para intentar a ação penal. Cumpre traçar tal distinção, porque, no caso do crime de racismo, a ação penal é pública, proposta, portanto, pelo Ministério Público.
Deve-se investigar, por outro lado, a maneira como se deu a prisão em flagrante. Como agiu o delegado para constatar a flagrância? De acordo com o artigo 302, do Código de Processo Penal, considera-se em flagrante delito quem – a) está cometendo a infração penal; b) acaba de cometê-la; e em outras situações que não interessam ao caso em exame. O Delegado de Polícia, para realizar o flagrante, deveria estar dentro do campo e ter presenciado o ocorrido, o que evidentemente não aconteceu. Constatada a agressão verbal, poder-se-ia admitir, numa hipótese remota, que qualquer outro atleta ou o árbitro realizasse a prisão em flagrante (art. 301, CPP). Assim, diante da impossibilidade da realização do flagrante pelo delegado, bem ainda da inércia dos que estavam em campo, inadmissível seria a ocorrência da prisão em flagrante. Observa-se, por oportuno, que o atleta argentino terminou o jogo, e somente, no fim da partida, recebeu a voz de prisão. O que poderia acontecer, diante da intenção do atleta em ver seu agressor punido, era ele ter ido à delegacia e requerido a instauração de inquérito policial para a apuração do caso, se entendesse necessário, uma vez que, como se sabe, o inquérito policial não é indispensável para a propositura da ação penal. Agora, o flagrante, da maneira como aconteceu, é inconcebível.
Um outro aspecto a ser discutido é a suspensão condicional do processo (art. 89, da Lei 9.099/95), benefício a que tem direito, desde que preenchidos todos os requisitos legais, o infrator de crime cuja pena mínima seja igual ou inferior a um ano, como no caso em comento, lembrando que a pena para a injúria qualificada é de 1 a 3 anos. Por razões de política criminal, é concedido um período de prova de dois anos em que o réu se submete a comparecimento mensal ao Fórum e comprovação de suas atividades, a fim de se evitar todos os percalços de um processo criminal. Deve-se questionar, por conseguinte, quem irá propor tal benefício - a vítima, autora da ação penal privada, ou o Ministério Público, que é o fiscal da lei, e atua com esse encargo nessas ocasiões? Embora ainda seja um tema controvertido, a doutrina e a jurisprudência caminham no sentido de que cabe ao Ministério Público oferecer o benefício, caso não seja ofertada a suspensão do processo pelo ofendido.
Todavia, em uma análise mais apaixonada e superficial, sob o ponto de vista de espectador e, principalmente, de brasileiro, considerando que o argentino tenha realmente proferido a agressão verbal discriminatória, a lição foi bem dada. Aguardemos o desfecho!

3 comentários:

Laurindo Fernandes disse...

O argentino tinha a intenção de ofender, mas a injúria qualificada, como muito claramente foi dito em seu texto, requer representação feita pelo ofendido, que é o titular da ação, no caso em pauta. O delegado se precipitou e agiu erroneamente, pois não cabia o flagrante, por motivos já expostos. Na verdade, o delegado queria aparecer e "pisou na bola", mas conseguiu seu intento: teve seus quinze minutos de fama.

Fabrício disse...

Laurindo, obrigado pelas visitas e colaborações sempre tão bem escritas. Espero contar sempre com sua participação. Abraço.

William R Grilli Gama disse...

A bem da verdade é que a segurança jurídica deve ser garantida até mesmo para os argentinos.
Não se pode tolerar um Estado policial onde os que se investem de guardiões da sociedade, uma vez travestidos nos seus distintivos, julgam-se aptos a cometerem as mais diferentes arbitrariedades sob os auspícios do "garantismo" da lei e da segurança.

Teria sido extremamente lamentável se fosse com um brasileiro, grosseiro se fosse um estrangeiro, mas risível por ser "só" um argentino...

Em tempo: a abordagem jurídica foi perfeita.