sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Os presidenciáveis e o PNDH-3


























A campanha presidencial nesse segundo turno orbita em torno de temas de forte conteúdo religioso. Vejo que a exploração desses temas tem sido exagerada, embora se reconheça que sejam assuntos importantes, que não podem ser ignorados. Vi vídeos em que religiosos fazem uma verdadeira demonização da candidata do PT, Dilma Rousseff. Por conta de uma manifestação dela no sentido de que o SUS poderá atender mulheres que fizeram aborto, padres e pastores disseminaram a notícia de que ela e o atual governo são favoráveis à interrupção da gravidez. Dizem que o PT vai permitir o aborto e o casamento de homossexuais. Falam também que o governo petista vai permitir as invasões de terras e que os invasores se tornarão proprietários. Denunciam que o PT irá instituir a censura no Brasil. Revelam preocupação com a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, porque tal tributo iria afrontar os princípios da propriedade privada, da liberdade e da livre iniciativa. No documentário, chegam a dizem que os servidores públicos não poderão sequer dizer que são cristãos, nem usar qualquer objeto que exteriorize sua opção religiosa. Concluir isso é um absurdo!
Enfim, nos vídeos elaborados pelos religiosos são ditas coisas com as quais não concordo. Fazem menção especial ao Decreto nº 7.037, de 21/12/2009, o chamado Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3. Cuida-se de decreto autônomo pelo qual o Presidente da República organiza e define diretrizes de atuação de seus ministérios e secretarias (art. 84, VI, a, CF). Embora os temas sejam importantes, não vejo como preocupante a posição do governo sobre eles. Vejo, aliás, que as diretrizes previstas no decreto sinalizam para a tendência mundial dos estados democráticos, especialmente no que diz respeito ao aborto e união homoafetiva. O que não dá para admitir é fechar os olhos para realidades inescondíveis desse mundo hodierno. Os candidatos – a do PT bem mais - estão sendo pressionados a revelar a sua opinião sobre o aborto e casamento de pessoas do mesmo sexo. O argumento mais importante eles não usaram: trata-se de assuntos para debate do Congresso Nacional, o ambiente plural e democrático para a discussão de temas tão relevantes. Como se sabe, o presidente jamais poderá descriminalizar o aborto ou permitir casamento homossexual mediante decreto ou medida provisória, porque se trata de instrumentos normativos para os quais há muitas limitações materiais. E não pode ser diferente. Apenas Emenda à Constituição ou lei formal, stricto sensu (proveniente do Poder Legislativo), pode dispor sobre esses temas. No tocante à união homoafetiva, embora não haja previsão expressa, entendo que há  farto agasalho constitucional para a sua admissão, a partir de uma interpretação sistemática da Lei Fundamental.
Sobre reforma agrária o decreto apenas dá orientação aos ministérios sobre o cumprimento da função social da propriedade, que não é direito absoluto. É por isso que existe a desapropriação. Não diz nada demais.
O imposto sobre grandes fortunas tem previsão constitucional (art. 153, VII, CF) e poderá ser instituído por meio de lei complementar. Qual é o problema em se instituir esse tributo? Ao contrário do que sustenta a igreja, penso que ele traria mais justiça fiscal a esse país tão injusto e desigual.
Com relação aos símbolos religiosos, é de se ressaltar que, a rigor, não se pode mesmo usá-los em órgãos públicos, diante do princípio da laicidade do estado (art. 19, I, CF). No âmbito particular e das relações sociais, existe a liberdade religiosa, mas, de outro lado, é importante dizer que o estado não tem religião oficial. O decreto somente diz que a União pretende regulamentar o tema por meio de lei. Só diz isso e nem pode dizer mais, porque se trata também de matéria de competência do Congresso Nacional.
No que diz respeito à censura, o decreto não diz nada demais. Apenas revela a preocupação de dar efetividade à norma do art. 221 da CF, no que tange à preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
O assunto é muito bom, mas não pretendo enveredar em discussões técnicas intermináveis sobre tudo isso. Seguem abaixo trechos do decreto confrontados com as normas constitucionais que dão sustentação ao que se pretende regulamentar.


Decreto (PNDH-3)
Objetivo estratégico II:
Afirmação dos princípios da dignidade humana e da equidade como fundamentos do processo de desenvolvimento nacional.

Ações programáticas:

d) Regulamentar a taxação do imposto sobre grandes fortunas previsto na Constituição.
Responsáveis: Ministério da Fazenda; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República
Objetivo estratégico III:
Garantia dos direitos das mulheres para o estabelecimento das condições necessárias para sua plena cidadania.
Ações programáticas:

g) Considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde.

g) Implementar mecanismos de monitoramento dos serviços de atendimento ao aborto legalmente autorizado, garantindo seu cumprimento e facilidade de acesso.

Objetivo estratégico V:

Garantia do respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero.

Ações programáticas:

a) Desenvolver políticas afirmativas e de promoção de cultura de respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero, favorecendo a visibilidade e o reconhecimento social.

Responsável: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República

b) Apoiar projeto de lei que disponha sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo.

Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Justiça
c) Promover ações voltadas à garantia do direito de adoção por casais homoafetivos.

Responsáveis: Ministério da Justiça; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República
Art. 1º, CF - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Art. 3º, CF - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

Art. 226, CF - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Decreto

Objetivo estratégico IV:
Garantia do direito a cidades inclusivas e sustentáveis.
Ações programáticas:

c) Fomentar políticas públicas de apoio aos Estados, Distrito Federal e Municípios em ações sustentáveis de urbanização e regularização fundiária dos assentamentos de população de baixa renda, comunidades pesqueiras e de provisão habitacional de interesse social, materializando a função social da propriedade.
Responsáveis: Ministério das Cidades; Ministério do Meio Ambiente; Ministério da Pesca e Aquicultura

Objetivo estratégico VI:

Acesso à Justiça no campo e na cidade.
Ações programáticas:

a) Assegurar a criação de marco legal para a prevenção e mediação de conflitos fundiários urbanos, garantindo o devido processo legal e a função social da propriedade.
Responsáveis: Ministério da Justiça; Ministério das Cidades
b) Propor projeto de lei voltado a regulamentar o cumprimento de mandados de reintegração de posse ou correlatos, garantindo a observância do respeito aos Direitos Humanos.
Responsáveis: Ministério da Justiça; Ministério das Cidades; Ministério do Desenvolvimento Agrário
c) Promover o diálogo com o Poder Judiciário para a elaboração de procedimento para o enfrentamento de casos de conflitos fundiários coletivos urbanos e rurais.
Responsáveis: Ministério das Cidades; Ministério da Justiça; Ministério do Desenvolvimento Agrário

Art. 5º, CF:
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

Art. 170, CF - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;

Art. 153, CF - Compete à União instituir impostos sobre:
VII - grandes fortunas, nos termos de lei complementar.

Decreto
Objetivo Estratégico I:
Promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação e o cumprimento de seu papel na promoção da cultura em Direitos Humanos.
Ações Programáticas:

a) Propor a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados.

Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Justiça; Ministério da Cultura

b) Promover diálogo com o Ministério Público para proposição de ações objetivando a suspensão de programação e publicidade atentatórias aos Direitos Humanos.

Responsáveis: Ministério da Justiça; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República

c) Suspender patrocínio e publicidade oficial em meios que veiculam programações atentatórias aos Direitos Humanos.
Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Justiça

e) Desenvolver programas de formação nos meios de comunicação públicos como instrumento de informação e transparência das políticas públicas, de inclusão digital e de acessibilidade.
Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Cultura; Ministério da Justiça

f) Avançar na regularização das rádios comunitárias e promover incentivos para que se afirmem como instrumentos permanentes de diálogo com as comunidades locais.

Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Cultura; Ministério da Justiça

g)  Promover a eliminação das barreiras que impedem o acesso de pessoas com deficiência sensorial à programação em todos os meios de comunicação e informação, em conformidade com o Decreto no 5.296/2004, bem como acesso a novos sistemas e tecnologias, incluindo Internet.

Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Justiça

Art. 220, CF - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Art. 221, CF - A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Decreto
Objetivo estratégico VI:
Respeito às diferentes crenças, liberdade de culto e garantia da laicidade do Estado.

Ações programáticas:
a) Instituir mecanismos que assegurem o livre exercício das diversas práticas religiosas, assegurando a proteção do seu espaço físico e coibindo manifestações de intolerância religiosa.

Responsáveis: Ministério da Justiça; Ministério da Cultura; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República

b) Promover campanhas de divulgação sobre a diversidade religiosa para disseminar cultura da paz e de respeito às diferentes crenças.

Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Cultura; Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República

d) Estabelecer o ensino da diversidade e história das religiões, inclusive as derivadas de matriz africana, na rede pública de ensino, com ênfase no reconhecimento das diferenças culturais, promoção da tolerância e na afirmação da laicidade do Estado.

Responsáveis: Ministério da Educação; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República
e) Realizar relatório sobre pesquisas populacionais relativas a práticas religiosas, que contenha, entre outras, informações sobre número de religiões praticadas, proporção de pessoas distribuídas entre as religiões, proporção de pessoas que já trocaram de religião, número de pessoas religiosas não praticantes e número de pessoas sem religião.

Responsável: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Art. 19, CF - É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;)

















3 comentários:

Thonny Hawany disse...

Excelente reflexão sobre o PNDH. É sempre muito bom ler o que pessoas inteligentes e esclarecidas escrevem. A minha preocupação e a forma como essas questões polêmicas estão sendo levadas aos leigos sentados nos duros bancos das igrejas apenas dizendo: AMÉM. São essas pessoas que vão decidir o destino de todos os brasileiros por meio de um voto temeroso e temerário ao mesmo tempo. Não vejo nada demais em nenhum dos pontos apresentados no PNDH, mas não é assim que pensam os dirigentes das igrejas que foram elevadas da condição de casa de Deus para CURRAIS e redutos políticos de mercenários que exploram a fé o homem de poucas letras. Mais uma vez, parabéns pela boa e animadora reflexão. Estou esperando que você dê uma passadinha para deixar um comentário lá no Thonny Hawany.

Unknown disse...

Fantástico o texto do professor. Estão misturando Deus com política, uma mistura indigesta, até porque Deus não se mete nisso. O jornalista Alexandre Garcia disse dia desses que: " Se Deus se metesse em política, Hitler certamente não teria nascido, ou não teria assumido o poder na Alemanha" achei uma verdade absoluta. Eu sinceramente não consigo assistir esses programas eleitorais, se vê de tudo, pastores e padres em vez estar em suas respectivas igrejas pregando o evangelho, metem a cara na televisão tomando partido de A ou B, dando pitacos sobre questões mal resolvidas, como a legalização do aborto, a criminalização da "homofobia", a União Civil entre pessoas do mesmo sexo, adoção de crianças por parte de parceiros homossexuais, e a legalização da maconha e outras drogas ilícitas. Os presidenciáveis fazem de tudo para levar os " simples mortais " a crerem que eles acreditam em Deus, só falta agora aparecerem de Bíblia nas mãos.
Cada nação tem o governo que merece. Que triste.

Parabéns professor. Show de bola.

Ezequiel Balmant

Anônimo disse...

Olá Fabrício,

parabéns pela oportuna reflexão. Muito obrigado pelas visitas ao blog "meiacasa" e pelos gentis comentários lá deixados.
Abraços, Volmar.