quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Novas reflexões - ou nem tanto







As muitas notícias recentes envolvendo o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça e a prisão de deputado estadual não me deixam em paz. E eu não consigo entender a razão pela qual tantos alunos meus reclamam de Direito Constitucional dizendo que são coisas distantes, abstratas demais. Ora, só é assim, porque eles querem. O tempo todo as emissoras de TV estão falando de importantes temas constitucionais. Quem não se interessa, não toma gosto por esses assuntos, tem mesmo que mudar de curso ou de profissão e, talvez, ir fazer moda, gastronomia, turismo, corte e costura etc. Lá vão os meus comentários.

Prisão preventiva de deputado estadual

Eu já tratei aqui sobre a questão relativa às imunidades parlamentares. Como é sabido por todos, a operação Termópilas, desencadeada pela Polícia Federal, redundou na prisão em flagrante do presidente da Assembleia Legislativa de Rondônia, deputado Valter Araújo. Após a prisão em flagrante e a demora da Casa Legislativa em decidir sobre a liberdade ou não do parlamentar (art. 53, § 2º,CF),  o Tribunal de Justiça converteu a prisão em flagrante em cautelar. Vimos que o deputado estadual Valter Araújo obteve a sua liberdade em habeas corpus deferido pelo STJ. Ocorre que ontem o STJ, alegando que os advogados de Valter mentiram sobre os crimes imputados a ele, ordenou nova prisão preventiva do deputado. A questão é: deputado estadual pode ser preso preventivamente? Pelo que sei, a teor do Texto Constitucional, senadores, deputados federais só podem ser presos em flagrante delito de crime inafiançável (art. 53, §2º, CF). Esta regra é estendida aos deputados estaduais por força do art. 27, §1º, CF. Confere-se:

Art. 27. O número de Deputados à Assembléia Legislativa corresponderá ao triplo da representação do Estado na Câmara dos Deputados e, atingido o número de trinta e seis, será acrescido de tantos quantos forem os Deputados Federais acima de doze.
§ 1º - Será de quatro anos o mandato dos Deputados Estaduais, aplicando- sê-lhes as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas.

Se é justa, razoável ou ética essa proteção nós podemos discutir numa outra oportunidade. Até já defendi no penúltimo texto que isso não tem sentido, mas o que se tem é uma norma claríssima no sentido de que somente é cabível contra parlamentar prisão em flagrante de crime inafiançável, prerrogativa não aplicável aos vereadores, uma vez que a Constituição Federal não contempla a imunidade formal a eles.  Assim, sem querer fazer uma defesa do deputado estadual preso, é inconstitucional a prisão sofrida por ele. Não se pode decretar nenhuma prisão provisória (preventiva, temporária, decorrente de pronúncia, flagrante de crime afiançável), nem mesmo a civil do devedor de alimentos. Vejam-se, a propósito, lições da doutrina e da jurisprudência, sobretudo, nesse particular, a do Supremo Tribunal Federal. 


A doutrina constitucional é firme quanto à regra de que, desde a expedição do diploma, os parlamentares não poderão ser submetidos a prisão civil ou penal, nesta hipótese inclusa a custódia preventiva, tendo como única exceção o flagrante de crime inafiançável e, mesmo neste caso, os autos deverão ser encaminhados dentro de vinte e quatro horas à casa legislativa a que pertencer o preso, para que resolva sobre a prisão (LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 11ª edição, São Paulo: Método, 2007, p. 358).

No mesmo sentido: “É curioso anotar que a imunidade processual na Constituição de 1988 é muito abrangente, englobando a prisão penal e a civil. Significa que o parlamentar não poderá sofrer nenhum ato privativo da sua liberdade, exceto em flagrante de crime inafiançável” (BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 784). Rigorosamente idêntica é a doutrina de ALEXANDRE DE MORAES (Direito Constitucional. 20ª edição, 2006, São Paulo: Atlas, pp. 422/423).


RE 456679/DF - (Informativo 413)
A segunda, de caráter formal (imunidade parlamentar formal), a gerar o estado de relativa incoercibilidade pessoal dos membros do Poder Legislativo Federal, Estadual e Distrital (freedom from arrest), pelo que só poderão eles sofrer prisão provisória ou cautelar numa única e singular hipótese: situação de flagrância em crime inafiançável (art. 53, § 2º, c/c os arts. 27, § 1º, e 32, § 3º, todos da Constituição Federal). (...) destacou o em. relator, em comentário ao art. 53 da Constituição Federal, que as "prerrogativas de caráter político-institucional que inerem ao Poder Legislativo e aos que o integram" são irrenunciáveis e consubstanciam tradição consolidada "ao longo da evolução de nossa história constitucional republicana (CF de 1891, arts. 19/20; CF de 1934, arts. 31/32; CF de 1937, arts. 42/43; CF de 1946, arts. 44/45; CF de 1967, art. 34; CF de 1969, art. 32; CF de 1988, art. 53)" - RTJ 135/509-515. Não é o que ocorre com o advento da Constituição Federal de 1988 que, em seus arts. 27, § 1º, e 32, § 3º, determinou expressamente que se aplicam aos Deputados Estaduais e aos Deputados Distritais "as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos ...", revogando com isto a Súmula nº 3 do Supremo Tribunal Federal, editada à época em que as inviolabilidades e imunidades daqueles agentes políticos decorriam das Constituições estaduais. Bem por isso, e com absoluta razão, a eg. Quinta Turma do STJ invocou como aplicável à espécie o aresto unânime com que o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou a questão incidente no Inquérito nº 510-DF, de que foi relator o em. Ministro CELSO DE MELLO, tendo por objeto as prerrogativas político-institucionais asseguradas aos parlamentares pela Constituição Federal (art. 53, § 2º). Não poderia ser diferente, já que a própria Constituição Federal manda aplicar essas prerrogativas aos Deputados Estaduais e aos Deputados Distritais (arts. 27, § 1º e 32, § 3º). Essa também é a conclusão de ROBERTO ROSAS, ao concluir seus comentários sobre a Súmula nº 3 do STF: "A Constituição de 1988 manda aplicar as suas regras sobre imunidade aos deputados estaduais (art. 27, § 1º); logo, ampliou as imunidades, além dos limites da Súmula" (ob. cit., pág. 13)."


Eu não quero crer que os advogados do deputado não apresentaram esses argumentos no habeas corpus impetrado perante o STJ. 


O Conselho Nacional de Justiça 

Sobre o CNJ eu já falei aqui também. O que vimos nessa semana foi novamente o STF dizer que a atuação no conselho só se justifica diante de inércia ou desídia das corregedorias dos Tribunais de Justiça. Seria algo subsidiário. A decisão liminar, proferida pelo ministro Marco Aurélio, em ADI ajuizada pela Associação dos Magistrados do Brasil, causou enorme repercussão. Além de uma tentativa de moralizar a vida disciplinar e administrativa, constata-se uma verdadeira disputa de força, de vaidade, dentro do Judiciário, quando se fala em CNJ.

Outra notícia da semana diz respeito à decisão dada pelo ministro Ricardo Lewandowski em mandado de segurança impetrado por associações de magistrados em que se discute investigação perpetrada pelo CNJ nos Tribunais de Justiça a respeito de concessão de indenizações a juízes. O ministro do STF entendeu que o CNJ, em sua atuação, quebrou sigilo bancário e fiscal de pessoas, sem respaldo em decisão judicial. 

Se isso aconteceu mesmo, o ministro está corretíssimo, porque o CNJ não tem jurisdição. Trata-se de órgão administrativo do Poder Judiciário. 

Aproveita-se a oportunidade para se cuidar do tema quebra de sigilo de correspondência, bancário, fiscal etc. 

Como se sabe, os direitos fundamentais se prestam, em maior dimensão, à proteção do particular em face do Estado. Não possuem, porém, caráter absoluto, porque há outros valores de mesma envergadura, também reconhecidos como fundamentais: segurança pública, moralidade administrativa, meio ambiente. A respeito disso, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

“Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros” (MANDADO DE SEGURANÇA 23.452-RJ, Rel. Min. Celso de Mello).

O direito à privacidade e à intimidade tem a marca da fundamentalidade justamente para resguardar os cidadãos de investidas abusivas em sua vida particular, sobretudo cometidas pelo estado (art. 5º, X, XII, CF). É por isso que, em regra, somente o juiz pode afastar os sigilos da correspondência, bancário, fiscal, determinar interceptação telefônica. Destaca-se aqui algo interessante que, de certo modo, dispensa a chamada reserva de jurisdição (somente o juiz).  Pode a CPI, por expressa autorização constitucional e mediante decisão fundamentada, quebrar os sigilos referidos.

"O princípio constitucional da reserva de jurisdição – que incide sobre as hipóteses de busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), de interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e de decretação da prisão, ressalvada a situação de flagrância penal (CF, art. 5º, LXI) – não se estende ao tema da quebra de sigilo, pois, em tal matéria, e por efeito de expressa autorização dada pela própria Constituição da República (CF, art. 58, § 3º), assiste competência à CPI, para decretar, sempre em ato necessariamente motivado, a excepcional ruptura dessa esfera de privacidade das pessoas." (MS 23.652, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-11-2000, Plenário, DJ de 16-2-2001.) No mesmo sentido: MS 23.639, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-11-2000, Plenário, DJ de 16-2-2001.

Relativiza-se também a reserva de jurisdição quando se fala em sigilo da correspondência em se tratando de estabelecimento prisional. Confere-se:

A administração penitenciária, com fundamento em razões de segurança pública, de disciplina prisional ou de preservação da ordem jurídica, pode, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, parágrafo único, da Lei 7.210/1984, proceder à interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, eis que a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas.” (HC 70.814, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º-3-1994, Primeira Turma, DJ de 24-6-1994.)

A proteção ao cidadão é de tal relevo que até mesmo os órgãos do Fisco ou instituições financeiras não podem divulgar os dados fiscais ou bancários de um particular, sendo inconstitucional norma que reconheça esse poder a essas instituições. 

“Conforme disposto no inciso XII do art. 5º da CF, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. (...) Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte.” (RE 389.808, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 15-12-2010, Plenário, DJE de 10-5-2011.)


“Inquérito. Quebra de sigilo bancário. Compartilhamento das informações com a Receita Federal. Impossibilidade. (...) Não é cabível, em sede de inquérito, encaminhar à Receita Federal informações bancárias obtidas por meio de requisição judicial quando o delito investigado for de natureza diversa daquele apurado pelo fisco. Ademais, a autoridade fiscal, em sede de procedimento administrativo, pode utilizar-se da faculdade insculpida no art. 6º da LC 105/2001, do que resulta desnecessário o compartilhamento in casu.” (Inq 2.593-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 9-12-2010, Plenário, DJE de 15-2-2011.)

Tem-se, contudo, a evidência de que os agentes do Fisco e os funcionários das instituições financeiras têm informações preciosas sobre pessoas e empresas, sendo possível a utilização delas, quando formalmente instaurados processos administrativos, dispensando-se a ordem judicial, mas se guardando o devido sigilo, conforme estabelece a Lei Complementar nº 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e dá outras providências:

Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

Algumas nuances podem fazer muita diferença quando se examina uma questão, sem embargo de existirem opiniões diversas sobre os tantos temas que envolvem os direitos fundamentais. Agora, se o CNJ, nesse episódio da investigação de auxílio-moradia recebido por juízes, quebrou sigilo bancário, de fato, violou a Constituição, porque se trata de órgão não investido de jurisdição.