quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Venire contra factum proprium?





















São cada vez mais discutidos os princípios da 'Segurança Jurídica',  'Venire contra factum proprium' (vedação de comportamento contraditório) e da Proporcionalidade. Parece ser o assunto da moda. De fato, são temas muito interessantes. A propósito, publico aqui uma defesa que fiz em que alego exatamente esses aspectos. A controvérsia se instalou porque, depois de muitos anos, tentou-se  invalidar a aquisição de uma propriedade por cidadão português, sob a alegação de não terem sido preenchidos requisitos legais. Lá vai.


O Estado Democrático de Direito revela-se sob o postulado da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, CF), revelada pela proteção à estabilidade das relações jurídicas existentes. Não é razoável que agora, após mais de vinte e quatro anos, o Estado venha declarar a nulidade de um negócio jurídico e do direito fundamental à propriedade.
A segurança jurídica é um direito fundamental do cidadão. Implica normalidade, estabilidade, proteção contra alterações bruscas numa realidade fático-jurídica. Significa a adoção pelo estado de comportamentos coerentes, estáveis, não contraditórios. É também, portanto, respeito a realidades consolidadas. Há limites para o exercício do império do poder, que são os direitos fundamentais.
A Lei Fundamental consagra que o exercício da atividade administrativa (a Jurisdição Voluntária se insere aqui) não pode e não deve afastar-se dos valores da lealdade e da confiança, ao estabelecer explicitamente os princípios da solidariedade, dignidade humana, moralidade e segurança jurídica, dos quais se extrai a idéia de boa-fé objetiva. Sobre a segurança jurídica, impõe-se registro de lição do STF:

(...) Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público.’ (MS 22.357/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes)."

Desse modo, não se autorizam mudanças bruscas numa realidade consolidada. Não tem sentido que abruptamente, devido a um equívoco de um agente público, seja agora a propriedade desconstituída. Esse comportamento afronta um outro princípio decorrente da segurança jurídica: a vedação de comportamento contraditório (venire contra factum proprium), o que será explorado a seguir.

O Venire contra factum proprium cuida-se da vedação do comportamento abusivo no qual o agente público adota uma posição jurídica em contradição com a conduta assumida por ele anteriormente. Como diz a doutrina, verificam-se dois comportamentos lícitos e sucessivos, porém o primeiro (fato próprio) é contrariado pelo segundo. Funda-se na necessidade de se preservar a confiança depositada na outra parte quando da prática do primeiro ato. Insere-se, ademais, na "teoria dos atos próprios", segundo a qual se entende que a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com sua anterior conduta interpretada objetivamente. É EXATAMENTE ISSO QUE ACONTECEU NO CASO EM EXAME. Reitera-se: somente agora, vinte e quatro anos após a aquisição do imóvel rural, o Estado – absolutamente inerte até então - resolve verificar a legalidade do negócio jurídico.

É mais do que oportuno mencionar precedente do Superior Tribunal de Justiça sobre esse tema:

Título de propriedade outorgado pelo poder público, através de funcionário de alto escalão. Alegação de nulidade pela própria administração objetivando prejudicar o adquirente: INADMISSIBILIDADE. Se o suposto equívoco no título de propriedade foi causado pela própria administração, através de funcionário de alto escalão, não há que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição. Aplicação do princípio nemo potest venire contra factum proprium (STJ, 2ª Turma, RESP 47015/SP, Rel. Min. Ademar Maciel, DJ, 9-12-1997).

Não é demais lembrar que os cartórios exercem serviço público. Trata-se de agentes públicos todos os que exercem atividades registrais ou notariais. Aliás, é por conta disso que os Tribunais de Justiça fazem sistematicamente nos cartórios correições por meio de suas Corregedorias, exatamente o que ocorre no presente caso.

A pretensão do INCRA afigura-se também desproporcional (CF, art. 5º, LIV).

Há diversas tentativas de conceituação do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, devendo ser destacada a idéia de ser um critério de verificação da adequação, bom senso e equilíbrio dos atos judiciais, administrativos e legislativos, pautando-se sempre por premissas que formam binômios como necessidade e utilidade, fim e meio, adequação e pertinência, sempre mediante uma análise de dois parâmetros. Trata-se de opção pela medida adequada em relação aos meios para alcançar os fins propostos, utilizando-se, sempre que possível, o meio menos gravoso para se atingir um fim pretendido.

Uma decisão agora pela Corregedoria de Justiça de cancelar o registro da propriedade se revela a mais extremada, gravosa e desproporcional. O cancelamento do registro do título da propriedade não é medida (meio) necessária, útil, adequada e pertinente para alcançar algum fim de saneamento. Agir assim afronta o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade.

Sobre o princípio da proporcionalidade assim já decidiu o STF:

O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.
A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV) (...)(RTJ 176/578-580, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Nessa mesma linha, Luís Roberto Barroso, em rica pesquisa, ensina:

O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar. Há autores, mesmo, que recorrem ao direito natural como fundamento para a aplicação da regra da razoabilidade, embora possa ela radicar perfeitamente nos princípios gerais da hermenêutica .

Não se trata de uma nulidade intransponível. É de se invocar, no caso, a teoria do fato consumado, sobre a qual, enfrentando o tema segurança jurídica, assim já se manifestou o Supremo Tribunal Federal:

"A teoria do fato consumado não se caracteriza como matéria infraconstitucional, pois em diversas oportunidades esta Corte manifestou-se pela aplicação do princípio da segurança jurídica em atos administrativos inválidos, como subprincípio do Estado de Direito, tal como nos julgamentos do MS 24.268, DJ de 17-9-2004 e do MS 22.357, DJ de 5-11-2004, ambos por mim relatados. (RE 462.909-AgR, voto do Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 4-4-2006, Segunda Turma, DJ de 12-5-2006.).

Nesse particular, extrai-se do julgamento proferido pelo STF (ministro Bilac Pinto no RE nº 85.179/RJ - RTJ 83/921) lição de Miguel Reale (Revogação e Anulamento do Ato Administrativo, Forense, 1968), em que se encontram valiosos ensinamentos sobre o tema:

Não é admissível, por exemplo, que, nomeado irregularmente um servidor público, visto carecer, na época, de um requisitos complementares exigidos por lei, possa a Administração anular seu ato, anos e anos volvidos, quando já constituída uma situação merecedora de amparo e, mais do que isso, quando a prática e a experiência podem ter compensado a lacuna originária (...)

Ainda na linha do princípio da segurança jurídica e da teoria do fato consumado, ensina a doutrina:

Assim sendo, se a decretação de nulidade é feita tardiamente, quando a inércia da Administração já permitiu se constituíssem situações de fato revestidas de forte aparência de legalidade, a ponto de fazer gerar nos espíritos a convicção de sua legitimidade, seria deveras absurdo que, a pretexto da eminência do Estado, se concedesse às autoridades um poder-dever indefinido de autotutela .

Por fim, é possível ainda cogitar a idéia de sanar o vício, que não se reveste de ilegalidade capaz de desconstituir um título de propriedade devidamente escriturado e registrado, permitindo-se ao INCRA que autorize ou ateste, com efeitos retroativos, a validade da aquisição do bem imóvel rural, adquirido na mais absoluta boa-fé.